Filha de uma das mais carismáticas e emblemáticas figuras dos rebuçados do Peso da Régua, Sónia Tavares vende para os turistas, na estação de comboios há mais de vinte e seis anos. Sónia repete com amor o quão adora o que faz, embora não se considere sempre valorizada na sua profissão.
A estação de comboios, situada no Peso da Régua, oferece uma forma bastante peculiar de receber os seus turistas. Os turistas consideram que a receção os contenta, por ser uma alegria ao vê-las, como me comprova Sónia Tavares.
Antes de serem contemplados pelo rio Douro e pelo néctar delicioso da região que não deixa indiferente quem visita, os turistas são recebidos, assim que chegam de comboio, pelas vendedeiras de rebuçados da Régua. De batas brancas e cestas de vime carregadas aos braços, entoam alto e em bom som, para que ninguém lhes escape: “Olha os rebuçadinhos da Régua!”. Surpreendidos e sorridentes, caem nas boas graças das senhoras que lhes apresentam, a bailar nas mãos, os sacos com os nove doces cada um, pela quantia de um euro. Há quem não perceba exatamente o que elas dizem, mas basta serem-lhes apresentadas as suas cestas apetrechadas, que tanto custam às suas costas, que os turistas logo obedecem à sua curiosidade.
Não se sabe ao certo de como surgiu esta tradição, nem há quanto tempo é que ela se iniciou, como nos afirma Sónia Tavares, que já há mais de vinte e seis anos vende os seus rebuçados com orgulho. Ainda assim, as outras gerações dizem ser uma tradição muito antiga. Os rebuçados eram vendidos nas festas locais e romarias nas redondezas e, por essa altura, havia dois vendedores muitos conhecidos destes rebuçados – o “Prosa” e o “Cândido Rebuçadeiro”.
Para quem conhece a história, fica surpreendido com esta informação, já que apenas mulheres são avistadas agora a vender os doces. Só estas mulheres dão continuidade a esta tradição, fazendo de tudo para que não caia no esquecimento, como tantas outras. Sabe-se ainda que, na década de 40, no conhecido e característico restaurante da gare, da estação, quatro vendedoras, de bata verde como era costume nesses tempos – ao contrário da cor vislumbrada hoje em dia –, enchiam a estação: uma vendia água em bilha, custando, nessa altura, 15 tostões; outra, por seu turno, vendia em cantarinha, um copo de água; uma terceira vendedora, com o seu tabuleiro, pregava caramelos, bolachas e fruta; já a quarta, vendia os atuais rebuçados da Régua, três pacotes a cinco escudos.
“Nós somos como as formigas. Juntamos de verão para o inverno.”
Sónia Tavares faz parte da geração mais nova de rebuçadeiras da Régua na estação de comboios. Acorda cedo e, por volta das sete da manhã, está na estação de comboios a vender, juntamente com a sua mãe. Há quem lhe traga a comida para o almoço e é nas ruas que acaba por fazer a sua refeição, sentada na esplanada do café, ou em qualquer local que dê para se sentar e conseguir comer.
No cantinho das paragens de autocarro, faz-se notar pela bata branca e pela cesta de vime que traz consigo. Não a oiço entoar a cantiga que as suas antigas colegas de profissão despertavam quem ali passasse, mas nem por isso se desvia e tagarela com quem considera ser um possível comprador.
“É um trabalho cansativo, porque se está muitas horas de pé para tentar vender e custa por causa deste peso”. Ainda assim, não deixa de se imbuir na efervescência que existe até do próprio trânsito de carros e autocarros, bem como na chegada e partida do comboio, porque assim o trabalho o exige. Leva consigo uma cadeira de plástico e por vezes senta-se. O ruído do trânsito é ensurdecedor. Carros e autocarros concentram-se e passam constantemente, formando filas enormes. Mas Sónia, que já está habituada, gosta da movimentação da cidade.
É ali, na estação, o principal ponto de encontro com os turistas. Ainda assim, há diversas rebuçadeiras dispersas por locais estratégicos da cidade. Na altura do verão, é quando conseguem angariar mais dinheiro precisamente por causa dos visitantes. No inverno, já é outra história. “Vai dando para sobreviver. A gente junta e não tem uma vida abastada. É uma profissão que dá do verão para o inverno.” Como aquele trabalho vai dependendo sempre de quem visita a cidade, mas também dos seus clientes habituais, é uma profissão instável. “Se vender bem, vou diretamente para casa para fazer mais; se não vender, não faço, porque não vou estar a empatar material.”
Costumam vender para o Porto, para Lisboa, para Coimbra e até para a Bélgica e Suíça. Com essas vendas, o trabalho pode correr bem, por haver sempre quem queira. Os torrões, ao lado dos rebuçados, são um extra para quem não quiser o típico doce da Régua. Mas nada de alterar a receita.
A receita é a mesma há anos e o segredo, este, permanece em segredo. Por isso, apenas nos conta que os rebuçados levam limão, mel, açúcar e um pouco de água. Levados os ingredientes ao lume, deixa-se esperar pelo ponto. Untada a mesa de pedra de mármore com manteiga, espalha-se a combinação dos sabores e com uma espátula começa-se a mexer. Ainda a ferver, corta-se aos bocadinhos os rebuçados, aguarda-se a sua textura e embrulham-se em forma de laçarotes.
Este labor é feito por famílias, daí que passe de geração em geração, mas Sónia confessa que hoje em dia “há poucas”. Há uns anos, para sobreviverem e darem de sustento aos seus filhos, as mães iam trabalhar como rebuçadeiras. Apesar das dificuldades, conseguiam sustentar os seus. Só que as coisas mudaram.
“Os meus filhos têm uma vida melhor, que os meus pais não me conseguiram dar.” E acrescenta: “A minha Maria sabe fazer, mas nem pensar. Entristece-me que isto desapareça, mas por outro lado fico muito feliz que a minha filha tenha uma vida melhor que a mãe teve.” E vê esta realidade a igualar-se nas restantes vendedoras.
“Adoro! Adoro e não trocava a minha profissão por nada deste mundo.”
Há uma crença generalizada, conta-me, que a profissão de rebuçadeira da Régua acabe e passe a ser industrializada. Apesar da máscara, por causa da pandemia, vejo-lhe no rosto um ar triste. E, como regressando à realidade, alegra-se e muda de posição a fugir de mim e do sol abrasador que se resplandece sobre nós. Verdade seja dita por quem aqui passa, não se vê com a mesma intensidade as vendedoras a percorrer as ruas e a encatrafiar-se pelo meio da estrada a tentar vender aos condutores.
Mudamos de lugar, porque o sol na Régua nos obriga. Está calor, o trânsito não abranda – e logo agora com as vindimas, as carrinhas passam despassaradas – e ainda não se vendeu coisa nenhuma desde que aqui estamos a conversar. Digo que a estou a incomodar e a roubar tempo, mas ela rapidamente me riposta dizendo que não e que gosta de conversar.
A mãe levou-a para as ruas. Quis saber se ela gosta do que faz. Não me deixou com dúvidas nenhumas quanto a tal. “Adoro! Adoro e não trocava a minha profissão por nada deste mundo. Adoro muito conviver. Agora, estou aqui a falar contigo, depois vem outro e falo. Vêm pessoas que falam da sua própria vida, porque não me conhecem, e acabam por me contar muita coisa. Não há nada que a gente não saiba.” E desfaz-se a rir.
Comentei com ela de que agora entendia o motivo da Régua não ter um jornal e chamei-lhe de repórter local, para ver a sua reação. Rapidamente se riu e concordou comigo. Fiz ainda questão de saber como é que ela aborda os estrangeiros e torna a rir-se. Depois, com muito esforço, confessa-me: “É um espetáculo! Se não souber falar, invento.”
A pandemia veio afetar o seu trabalho, sendo esse um dos fatores negativos a apontar às suas vendas. Há dois anos, como não conseguia vender, teve de arranjar um trabalho. Porém, diz que não aguentou e tornou a regressar ao seu posto habitual. “Eu, como costumo dizer, não sou galinha de poleiro.”
No que toca a subsídios e a apoios, ela deixa claro que a Câmara Municipal não contribuiu com nada. Por isso, não se sente valorizada na sua profissão e diz que, “quando a Câmara Municipal chama a comunicação social cá, somos nós que damos a cara e somos a imagem da cidade”.
Sublinha ainda como solução e uma forma de se sentirem reconhecidas, que a Câmara Municipal devia comprar vinte pacotes a cada vendedora, de quando em vez, para nenhuma se sentir excluída. Recentemente, em época de eleições, compraram, a cada rebuçadeira, 40 pacotes de rebuçados. Sente-se revoltada, porque durante o ano, ninguém quer saber das vendedoras. “E eles não ajudam porque não querem. Não têm vontade.”
O final do dia está perto. O engarrafamento de trânsito é mais intenso e avistam-se alguns turistas a fotografar o Douro. Após um breve silêncio, não há nada como reforçar o carinho que nutre pelo que faz e lá me diz: “Eu vou continuar a fazer o que faço até conseguir. Eu adoro o que faço.” Arranja a cesta de vide e lá vai ela tentar vender os seus rebuçados a quem passa apressado.
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